sábado, 3 de janeiro de 2015

Conhece a história? Eis que te dou um trecho dela...

Daqui do alto as estrelas sussurravam que já era a hora de sonhar.
Encarei o jardim da orla pela última vez. O procurei em meio àquelas flores e, apesar de tantas tão distintas umas das outras,  nenhuma possuia o perfume dele. Nem que eu juntasse maresia e pétalas conseguiria o cheiro que me satisfaz.
Dei um sorriso amarelo pela falta do sorriso de canto.
Uma nebulosa chegou de mansinho e me aconchegou em seus braços.
Cedi ao remanso da noite e logo meus pensamentos começaram a se entregar à brisa.
Penso que talvez seja melhor assim.
Eu daqui e ele de lá... De algum lugar.
...
"Hey, você! Psiu!"
Num pulo - reconhecendo aquele timbre -  logo me ponho desperta, dessa vez com um sorriso de verdade e olhos alertas! Debrucei-me na nuvem e olhei lá pra baixo em sua direção:
"Mas por onde se meteu?"
"Por aí... Você voa daí e eu caminho daqui, ué. "
Minha empolgação murchou um tanto ao lembrar disso. - Daí, daqui, de lá, dali... - Advérbios devidamente distribuídos pra cada um. Disfarcei a tempo de que não percebesse:
"E que aventura viveu?" - perguntei com uma curiosidade sugestiva e peralta.
Ele deu os ombros:
"Nada de mais."
"Certo, guarde-as para vivê-las comigo então" - sorri debochada.
Ele desviou o olhar. Mesmo assim, eu sabia que sorria. E mais que isso, eu sabia que estava levemente vermelho. Revirou um montinho do chão com os pés, brincando com aquela mistura de grama e areia, enquanto murmurou algo que não pude entender.
"O que disse?"
Ele voltou então a me olhar:
"Nada. Deixa pra lá... Não vai descer?"
"Pela sua demora em aparecer por aqui, acho que você quem deveria subir."
Ele torceu o nariz.
"É difícil subir aí. Você sabe que eu não posso... "
"Eu sei que você não quer, isso sim. Senão já estaria aqui." - falei, mesmo sabendo que eu acabaria descendo.
"Ah, as vezes eu subo."
"E rouba pedacinhos do céu."
Rimos da lembrança enquanto eu chegava até o chão. Depois de um leve silêncio, daqueles que acontecem pra dois pares de olhos poderem se cumprimentar, eu disse:
"Vamos ver o mar? Já que você perdeu o pôr do sol, pode vê-lo nascer pelo menos. "
Ele aceitou daquele jeito de quem finge relutar. Ele fazia muito isso, por sinal. Deve ser coisa de quem vive muito tempo no chão, sabe? Essa gente fica dizendo "não" quando a alma já disse "sim".
Passamos a madrugada ali, brincando de onda, indo e vindo. Sendo o meio termo de chão e céu, sendo um pouquinho de mar.
As horas passaram que nem vimos o céu acender. De repente, o sol já tava ali, esquentando nossa pele e fazendo nossos olhos ficarem apertadinhos por causa de toda aquela luz. Ainda na água, olhei pra ele e ri:
"Hahaha! Teu olho tá inchado!"
"É mar, é sol, é sono! Esperava o que? Além do mais, os seus também estão!"
"Acontece quando você inventa de vir me visitar invadindo meu sono!"
Ele desviou o olhar e murmurou algo novamente, sorrindo daquele jeito, como quem sabe de tudo e não sabe de nada.
"Não entendi nada, o que disse?"
Levantou os olhos e fitou-me, zombeteiro. Suspirei exageradamente:
"Não vai dizer, não é?"
Ele fez que não com a cabeça, mantendo o jeito brincalhão em silêncio.
"Que coisa! Por que faz isso?"
"Isso o que?"
"Isso! Ou diz algo que eu não consigo ouvir ou me faz achar que ouvi uma coisa que não disse!"
Ele caiu na risada, achando graça da minha frustração. Eu, boba, deixei brotar minha própria risada logo atrás. O empurrei de leve, fingindo agressão. Ele me puxou e me tomou em um dos braços, ainda rindo. Saímos da água daquele jeito até que chegamos na areia. Ele me olhou e disse:
"Seus olhos mudaram de cor. Estão bonitos."
Quase que numa teimosia inconsciente, desviei o olhar e encarei o céu, protegendo o excesso de luz com a mão:
"Acho melhor voltarmos. Já já dão pela nossa falta... "
"É... É melhor."
"Te vejo amanhã?"
"Provavelmente."
"Hum... Bom, pelo menos você sabe subir... "
"Sei..."
"Pode aparecer sem medo... Se quiser...
Agora, vai. Vai logo, antes que eu peça pra ficar." -  Sorri descontraída em tom de brincadeira.
Ele me embrulhou num abraço e me envolveu o corpo, a mente e a alma. Ali agasalhada pelos braços dele, desliguei os pensamentos e deixei meu coração rimar com o dele um pouco. Ouvia melodias douradas saírem dali. Por fim, respirei fundo e o soltei. Pensei em como ele daria uma ótima nebulosa aconchegante... E lembrei do quanto eu precisava me manter afastada se o quisesse manter por perto...
"Bom... Eu tenho que ir. Apesar do sol ter nascido, as estrelas ainda estão lá. Se descobrem que fugi de novo, vão dar chilique em proporções de buraco negro... "
Ele sorriu de canto e fez que sim com a cabeça:
"Eu também já vou indo."
Demos um último abraço e fomos embora. Cada um no seu caminho.
Antes de passar pela primeira nuvem, tornei a olhar lá pra baixo a tempo de vê-lo olhando de volta. Ri e ele também. Acenei um último tchau antes que me desse vontade de voltar. Virei as costas e fui embora.
Chegando lá no alto repousei a cabeça nas nuvens. Sorri. Dessorri.
A esperança é a última que morre.
Mas pode ser a primeira que te mata.